Na última semana, durante minha trip Croácia/Itália, tive a oportunidade de conhecer Burano – uma ilha que fica a 7 km de Veneza. Além de ver as lindas casinhas coloridas típicas, fui atrás do Museo del Merletto – ou Lace Museum (museu da renda) – porque vi num mapa turístico e super me interessei.


Pela cidadezinha de Burano já notei as várias lojas com peças de decoração e roupas em renda. Também em Zadar e Hvar, na Croácia, eu tinha visto rendeiras pelas ruas, mas na correria dos passeios não parei para olhar os trabalhos com calma. Foi dentro do museu em Burano que descobri mais sobre a tradição européia – e mais especificamente Veneziana e Buranense – e fiquei encantada.
Logo na entrada havia um mapa com referências dos tipos de pontos que diversos países fazem até hoje, e ali descobri a diversidade dessa prática na Europa, indo da Inglaterra, Bélgica, Holanda, Itália e França até o leste europeu e a Rússia. Os tipos de ponto são bastante complexos e pelo que entendi, os pontos mais antigos são feitos com agulha e linha (needle lace) e suas variações já utilizavam bilros (a fuselli ou bobbin lace).

Em Veneza, os primeiros registros de produção de renda remetem a meados de 1400, e eram peças feitas por mulheres em conventos para compor vestimentas sacras e adornar altares. A renda era considerada um “exercício virtuoso” e nesses tempos, muitas mulheres “protegidas” por suas famílias, orfãs em instituições de caridade, ou que não casavam-se, passavam a vida inteira com uma agulha e linha na mão.

Com a popularização da renda veneziana entre nobres da Europa, os mercadores passaram a procurar mão-de-obra mais barata e focaram suas encomendas nas ilhas do entorno de Veneza. Burano logo se tornou uma referência no desenvolvimento de renda, e as artesãs locais ficaram conhecidas pelo chamado punto in aria (ou ponto de Burano), que era o diferencial da região.

Já em meados de 1500´s, a aristocrata italiana Catherine de Médici levou cerca de vinte artesãs buranenses para produzir na corte francesa em Paris.

Além do punto in aria, elas levaram para lá o maravilhoso gros point di venezia e desenvolveram lá o incrível rose point. Botei fotos deles abaixo:



Na cerimônia de coroação de Luís XIV em 1654, o monarca optou por usar uma gola de renda feita por duas artesãs buranenses – que segundo reza a lenda, demorou dois anos para ser concluída. Nesse período, outro grupo de artesãs locais foi à França, ensinar suas técnicas em escolas do país.

As golas produzidas para as roupas dos nobres eram tão detalhadas, que se tornaram símbolos de status inclusive para os pintores que conseguiam reproduzi-las fielmente nos retratos, como fazia o holandês Rembrandt.
Outro fato interessante é que o valor das peças era tão alto, que elas frequentemente eram incluídas nos inventários e testamentos das família de nobres, com o da rainha inglesa Elizabeth I. Vi vários quadros antigos no museu e achei incrível ver depois, pelo Google, tantos nobres com essas golas rendadas. Muito interessante pensar que peças de artesanato foram utilizadas com essa função social tão explícita no passado.


No final do século XVII e começo do XVIII o punto in aria perdeu um pouco do seu status pois a produção interna na França bombou e novos pontos começaram a ser valorizados, como o point de france. Com a chegada da revolução Francesa em 1789 e a queda das nobrezas, a demanda por renda caiu. As famílias em geral já não queriam se associar aos símbolos da nobreza decadente.
Outros cem anos depois, um inverno congelou o litoral de Burano e a atividade da pesca ficou comprometida. Para estimular a economia interna foi aberta em 1872 a Scuola di Merletti, que disseminou as técnicas antigas da renda para milhares de mulheres, até 1973. A escola funcionou no mesmo local onde o museu está hoje.

Após sair do museu e ter visto peças que datavam dos séculos 16, 17 e 18, visitei a loja “Merletti dalla Olga”, a mais antiga de Burano e que praticamente é outro museu. Lá eu vi centenas de trabalhos atuais, e a atendente me disse que existem cerca de 160 artesãs hoje em atividade na ilha (a maioria senhorinhas!). Muitas das peças são feitas hoje em pontos mais simples e com técnicas que utilizam bilros (como na renda feita em Sergipe).


O preço das peças em ponto Burano me impressionou muito: uma peça pequena para a mesa não custa menos que 100 euros. As médias ficam em torno de 250 e as grandes, tipo toalha, chegam a 900 (mais de R$3.300!).
Além da raridade do conhecimento técnico e o tempo empregado ali, esses preços também são justificados pois as peças frequentemente são feitas por mais de uma artesã, e um ponto, na verdade, inclui mais de um tipo de ponto dentro dele.
O somatório desses pequenos pontos que caracteriza se a peça é de ponto Burano, por exemplo. A atendente da loja me explicou que a peça que está na capa do post demorou vinte e cinco dias para ser feita, por sete artesãs!

Alguns fatos dessa época me chamaram a atenção: um pouco antes da Revolução Francesa a renda também sofreu uma baixa na Itália por conta da popularidade de uma peça teatral com viés feminista, do autor Carlo Goldoni. Ele colocou em destaque uma protagonista que desejava parar de fazer renda para estudar “como os homens”, e tentava convencer uma amiga.
Existe também a informação de que no ano de 1880, 24 mulheres entre os 30 internos do centro psiquiátrico de Isola di San Clemente eram artesãs de renda. Fato comprovado ou não, será que a atividade intensiva (e entediante?) do artesanato causou problemas psicológicos nessas mulheres? Ou esse contexto opressivo teria contribuído?

Hoje fico feliz em saber sobre núcleos produtivos de artesanato no Brasil e pelo mundo, onde as artesãs cooperam entre si e utilizam a prática como instrumento social para gerar renda e apoiar-se afetivamente – muitas vezes agregando valor a uma marca. Assim como artesãos homens levando a frente a prática e quebrando tabus do passado!
E você, tem alguma peça de renda manual em casa?
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